quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Capítulo 4

Ilustrações por: A.O.D.P. (clique na imagem para ampliar).
Trilha sonora para o Capítulo:
"The Widow"
Banda: The Mars Volta
CD: Frances The Mute


Mussurunga Via Mortos Vivos

Num pedaço de papel xerografado pela terceira vez, recortado a tesoura, cheio de dobras, manchas escuras de sangue seco e sujeira de dezenas de mãos: “Olá Amigo (a), sou pai de 12 filho. Tenho uma doença grave e preciso de sua ajuda. O remédio é caro, o doutor é caro. Não consigo emprego, não consigo trabalhar. Qualquer moeda você pode mim dá. Obrigado e Deus te abençoe”. Uma mão totalmente coberta por ataduras, livrando apenas as pontas dos dedos, despeja este papel no colo também enfaixado de Amélia. Ela olha pro rosto do homem, uma vermelhidão intensa cobria as maças do rosto e todo o nariz do pedinte.

– Qual é, vagabundo?! Não tá vendo que a menina nem consegue pegar o papel direito, rapaz! – Responde Agnaldo, devolvendo o papel olhando apenas para sua própria mão.

O homem recebe o papel, sujando-o um pouco mais de sangue, pesando um pouco mais a feição e passando adiante para o próximo par de assentos no transporte.

Um baleiro, que já se encontrava no seu marketing antes do homem, tentou disputar atenção, mas logo desistiu, frente ao grande apelo e eliminador de apetite ao seu lado na concorrência das vendas. Vendeu apenas alguns chocolates antes da entrada do concorrente.

Após passar os pedaços de papel e um pouco de nojo para todos, se posiciona ao palco do final do corredor com a mão direita levantada, segurando as barras de metal, para não cair com as freadas e arrancadas abruptas do motorista. A mancha inflamada, reluzente, vermelha, assada, cheia de sangue por debaixo da pele, retratava logo nas fuças, o sintoma mais aparente de Lupus. Feridas opulentas e necroses se espalhavam por todas as partes visíveis de sua pele, como círculos feito hematomas vermelhos, como raladuras e golpes de facão infeccionados, abraçando suas pernas finas. “... que Pariu... Que nojeira! Ô meu irmão, se pique rapaz!” bradava Agnaldo, levantando do assento e gesticulando de forma ameaçadora.

– Senhores ilustre passageiro. Vocês que sustenta o Brasil, vocês que me sustenta. Lê o recado aí, faz favor. Qualquer dez centavo aí tá bom. – Sua voz só era ouvida até a metade do ônibus, pois o ar ardia em seus pulmões, o abdômen tremia pelo esforço de respirar, a voz saia triste, aguda, fraca e rouca, além de baixa, deixando mais fácil a tarefa de não olhar e não ouvir o que ele dizia.

– Eu to doente, tenho lupu. Doença desgraçada. Preciso comprar os remédio cotircóidi que o doutor passou. – Interrompeu as palavras, puxando um pouco de ar vagarosamente, com a mão sobre o peito – Que o doutor passou... O cotir...

O homem se atira de joelhos ao chão e começa a tremer muito mais que a mão do motorista apoiada sobre o câmbio. Quando levanta a sua cabeça, aterroriza a única pessoa que o olhava, entre os mais de 30, Amélia. Ele arregala os olhos para a menina, mostra raivosamente os dentes tentando puxar o ar, sem conseguir. Só chama a atenção de todos quando se joga por inteiro ao chão, com os braços por cima das costas, a bochecha apoiada no metal e nas marcas de sapato, deixando o rosto torto e desesperado em busca da respiração. Um alvoroço se espalha e todos emitem gritos espalhafatosos, indo de “Pára! Pára!” até “Corre pro hospital Motor!”. Pela mente de Agnaldo, passou a idéia de enxotá-lo do ônibus e continuar o caminho sem mais problemas, porém imaginou que um soco no meio de tantas feridas o infectaria com alguma podridão dentre as centenas que o “parente de zumbi” poderia ter. Ao ver o homem cheio de espasmos ao chão, pensou ser mais fácil a tarefa de arrastá-lo pra fora.

Apesar de contrariar a vontade de Agnaldo e, possivelmente, outros no ambiente, o lobo de si mesmo, caracterizando sua doença auto-imune, continuava a se debater por cima das placas de aço do chão do ônibus, emitindo um som específico, ininterrupto e cada vez mais alto das pancadas do crânio contra o chão.

Tão instantâneo quanto o nascer do sol, com seu reflexo atrasado em 50 anos e com a agilidade supersônica de uma lesma adormecida, o motorista corta a avenida, atravessando todas as faixas com seu monstro de capacidade para 80 pessoas, recebendo disparos de buzinas variadas, cantadas de pneu e palavrões bem gordos e cabeludos. Era uma sonoridade completa, de percussão craniana até corais dissonantes e ofensivos de carros, motoristas e passageiros com o motor velho do ônibus, em alta aceleração, fazendo os sons graves e subgraves. O lobo-zumbi não parava um segundo, preenchendo o cargo de dançarino descontrolado, dessa banda doentia.

O coletivo entra num retorno e corta como uma faca cega o trânsito da outra mão da avenida, já se direcionando a entrada ladeira acima. A toda velocidade possível de toneladas de ferro velho motorizadas, a caravana se dirige ao hospital mais próximo. As janelas e chapas de metal formavam uma bateria frenética e ensurdecedora com o carro pesado, frouxo e cheio de folgas passando violentamente por buracos e quebra molas. Agnaldo assume a cantoria e protesta:

– Isso é um desrespeito Motor! Você “se sai” do caminho de várias pessoas por causa de uma só! Palhaçada rapaz! Larga esse filho de uma ronca-e-fuça aí mesmo! – O motorista continua seu caminho em silêncio, seguindo automaticamente seu instinto e o protocolo da empresa.

– Ele tá morrendo assufocado! – Grita uma senhora suada com a mão na testa, querendo cantar também.

O grito aciona uma lembrança em Amélia, ela se prepara para levantar. Carregando alguns quilos a mais de gesso, ataduras e ossos em recomposição e muitos quilos a menos de nojo em relação aos seus colegas espectadores e passageiros, ela se levanta, se dirige, num pé só, até o corpo estatelado ao chão, trêmulo, porém já sem forças. Ela se ajoelha, vira o homem de barriga pra cima com a ajuda de outra pessoa ao lado. Observa a sua boca cheia de cortes, veias arroxeadas saltando, lábios rachados, barba por fazer, suor e a saliva escorrendo pelo canto, a mancha em forma de borboleta vermelha já perdia sua tonalidade e partia para um roxo estranho. Não fosse o leve ir e vir da goela do lobo, a sua expressão apática e estática de zumbi daria o atestado de óbito. Amélia tampa o nariz do homem, espremendo os poros suados e inflamados, encosta a sua própria boca ferida à boca do homem e começa a respiração artificial. Ela sopra o ar com toda a sua força para dentro dos pulmões da vítima, enchendo as bochechas do homem, espirrando sangue, o suor e a saliva. A mesma pessoa que ajudou a virar o lobo de barriga pra cima, acompanha a cena sem piscar e sente um arrepio estridente pelo corpo, não possui estômago e vomita, escada do ônibus abaixo, pensa ter desperdiçado o doce que acabara de comprar.

Amélia continua sua inútil tentativa, imitando a cena que viu no telejornal, até a porta emporcalhada se abrir e liberarem espaço para o enfermeiro. Este carrega o corpo desfalecido e arremessa-o sobre uma maca. Amélia observa a maca, lembra e deseja que ele consiga ficar nela durante o tempo suficiente para sua cura.

A caravana de enojados abandona o estacionamento do hospital sem saber que, mais tarde, o homem não resistiria ao ataque de seus próprios anticorpos contra seu pulmão.

O carro volta á sua linha normal, os pedaços de papel com a mensagem e o sangue violento do auto-alérgico, são amassados e jogados janela afora.

– Menina, essa sua boca, eu não beijo de jeito nenhum viu! Hahahahaha! – Divertia-se Agnaldo, sentado ao lado, passada a tensão do momento. Ela era a única que ainda segurava a mensagem.

Amélia salta no ponto de ônibus facilmente reconhecido por ser o seu da maioria dos dias. Agnaldo a levanta, segurando cuidadosamente as pernas da menina. Enquanto ele caminhava em direção à sua casa, passando e pulando os mesmos córregos e vielas que Antônia havia passado em fuga, Agnaldo comenta:

– Se preocupe não, Melinha. Agora cê vai morar comigo. Eu, você e Dorilene, a mais nova família do bairro, diga aí? Vai ser filé! – Risos.

Eles param em frente a uma casa em construção, com a mancha preta de fogo contornando o chão das paredes. O terreno foi forçadamente desapropriado algumas horas depois do registro policial sobre o incêndio. Agnaldo morava a uma distância de duas casas apenas.

“Quem é essa Agnaldo?”. Foi a primeira coisa, e já um grito, que saiu da boca de Dorilene ao ver seu marido entrando com uma menina nos braços. Ele parou na porta olhando fixamente para ela, quase zombando do comentário com o sorriso aberto.

– É minha noivinha! Tá vendo o vestido branco não? Tá meio sujinho, mas tem véu na cabeça e tudo, óia!

– Onde você arranjou essa menina, Agnaldo? – Já sem paciência.

– Ô maluca, essa aqui...

– Eu espero que não seja uma cria desgarrada por aí, cafajeste, porque se for, eu mato os dois! – Falou apontando a faca que cortava a carne do almoço.

– Essa aqui é a vizinha, Amélia. Do incêndio que teve semana retrasada. Fui pegar ela lá no Roberto Santos. Ela vai morar com a gente agora.

– Com que dinheiro, seu sacana!? Com que dinheiro você vai botar comida na boca dessa menina? – Esperneava Dorilene, aparentando querer cuspir os dentes junto com as palavras.

Agnaldo, ainda com a menina nos braços, a coloca com seus gessos e ataduras sobre o sofá velho na sala-quarto-cozinha.

– O pai dela era coligado meu, Dori! Relaxe aí, fique fria. Eu não vou deixar a filha do parceiro na rua.

Dorilene se cala e volta para a limpeza da carne, retirando as gorduras e nervos indesejados.

Agnaldo chega por trás dela, agarra o traseiro rechonchudo da mulher e fala baixinho ao seu ouvido:

– Depois que ela ficar boa, você bota ela pra cuidar dessas coisas e a gente cuida de outras coisas, hein? O que acha? Hum?

– Aí sim, vou pensar no seu caso... – Respondeu murmurando, com um sorriso safado no canto da boca, desviando os beijos de Agnaldo em seu pescoço e depois encarando a menina sentada e sujando seu sofá novo.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Capítulo 3

Ilustrações: A.O.D.P. (Clique na imagem para ampliá-la)

Cafifa

O barulho hipnótico do motor já estava mudo e não era mais ouvido no inconsciente. O sol, que nascia, se fincava lateralmente na pele das pessoas. O sono perpetrava o vazio, das janelas do ônibus pra fora, só se via o sol e o céu. Até que o silêncio do dia volta a ser ouvido, quando aparece de supetão, subindo as escadas da porta da frente, um homem aparentando ter entre 25 a 70 anos, com um olho cego e embranquecido pela catarata, alguns dentes pendurados na boca, coberto por panos imundos, poeirentos e enlameados, faixas amarradas nos pés fazendo sapatos. Atacou a tranqüilidade da manhã chacoalhando moedas dentro de um copo de vidro, copo de cachaça, grasnando como um pato acuado:

– Bom dia, senhores passageiro! – E parou por alguns segundos, balançando ainda mais a mão com o copo, contemplando o interior do transporte, passando os olhos amedrontadores sobre cada um.

– Vou interromper a viagem de vocês, fé em deus, meu pai, ajuda aí ó... Quem não tiver trocado eu aceito graúdo mesmo! Hahahahahaha...! – Abrindo a bocarra, expondo a gengiva, chacoalhando o copo e acentuando o tom animalesco de suas palavras.

Passou por cada assento, apoiando as mãos e abraçando as traves de metal pelo corredor, sem parar com as moedas, quase quebrando o vidro com o som agudamente penetrante, tropeçando entre as pernas dos passageiros e deixando escapar uns pebas nas cabeças desatentas ao passar de uma trave para outra. Foi até o fundo e voltou pedindo para os assentos à direita do carro.

Foi então que o barulho do vidro, que praticamente ditava as passadas lentas e cegas do mendigo, cessou com o último estalo das moedas se acomodando umas sobre as outras, e uma não audição do silêncio se libertando e voltando à tona se fez, como se todos destampassem os ouvidos e ouvissem nada, ouvindo o som do motor ao fundo. Antônia olha para a sua esquerda, analisa a imagem da criatura pedinte e fragorosa das coxas a cabeça. Ele não olha para ela, apesar de poder com um dos olhos, simplesmente pára em pé, ao lado da cadeira. Quando Antônia puxou o ar para dizer algum insulto ao semi-velho, este respondeu em tom de profecia barata:

– Tem gente que pensa que é o demônio que tira as coisa. Humpf... Que nada. O demônio é quem mais dá as coisa. Ele quer que as pessoa gostem das coisa. Que as pessoa caia no vício! Quem tira as coisa é deus... Ele que tira. Mas eu não culpo ele não, ele tá certo. Ele tá certo. As coisas dos homens quem dá é o demônio e quem tira... Quem tira é deus!

Terminou seu discurso com a cara amarrada e quase num espasmo em direção á porta, o semi-profeta, semi-homem, sai o mais rápido possível, arremessando seu corpo contra as traves, feito macaco de galho em galho, puxando a corda violentamente com a mesma mão que segurava o copo com as moedas, rasgando novamente o silêncio, como se preparasse a cama para sua voz de estardalhaço:

– Mas eu...! Mas eu, senhores passageiro, to precisando é de um demônio pra mim ajudar!

Rebatendo com sinais de cruz e resmungos, os viajantes observam o profeta pular do ônibus ainda, vagarosamente, em movimento. Foi o suficiente para que perdesse o equilíbrio ao tentar pousar num pé só, indo com a cara, o copo e as moedas todas ao chão, se espalhando pelo asfalto quente e rolando pelo barro seco da calçada, como um pano de chão velho. Antônia, acompanhando pela janela e já olhando pra trás, cai numa gargalhada contagiante e desprendida enquanto se senta novamente arrastando as costas nuas no plástico do assento. Dando novas risadas pelo caminho apenas por lembrar da queda do profeta, o sorriso no rosto permanece até a hora que se levanta para puxar a corda.

Antônia adentra seu local de trabalho, a boate “Terra de Índias”. O ambiente que nunca clareia, tendo a luz do sol enxotada pelos filmes nas portas de vidro e pelos espelhos embaçados de salitre nas paredes. Um mofo denso, quase palpável e pior agora que o ar-condicionado estava desligado. O cheiro de detergente se misturava com o de cerveja derramada e dormida. Uma senhora passa pano no chão, cantarolando solfejos retardados com o radinho de pilha, entre as cadeiras de perna pro ar sobre as mesas:

– Cidinha, cadê Cafifa?

– Tá aí nos fundo. Num entre não que ele tá contando dinheiro, viu?

– Chame ele...

– Faz favor, né?

– To brincando não, sua jéga! Chame ele! Velha fedorenta...

Após alguns minutos e um som de porta velha de madeira batendo, chega Cafifa. O sorriso que o precede enfeita as palavras doces saindo por cima de sua língua afiada “Ô Tonha, minha negona gostosa, vai dormir não, mulher?”. Tira as mãos dela de cima do balcão e leva até a sua boca, num galanteio importado e abrasileirado. Antônia olha para as mãos cheias de anéis e cicatrizes que seguravam as suas:

– Cafifa, to precisando de uma força sua, tá ligado? To aqui lenhada, velho... Minha casa pegou fogo, meus documento, meu dinheiro... To aqui como minha mãe me botou... Me arruma um barraco aí, qualquer lugar tá bom.

– Tonha! Não brinque não, rapaz! E Amelinha?

– Não sei, não quero nem saber daquela diaba, ela deve ter se saído. O problema é que eu to devendo agora, os quatro ficaram, sobreviveram não.

– Se ligue, você tá com sorte hoje, vamo ali comigo.

Gozando de um belo ar-refrigerado, sentadas no banco carona de um gigantesco carro de luxo, “as pernas que ninguém segura”, passeiam pela cidade, bem acomodadas sobre o couro sintético do automóvel. Antônia se admira ao enveredar pelas ruas largas e bem cuidadas de um bairro nobre e arborizado, com prédios requintados, cheios de porteiros, grades e jardins. Cafifa ri, “É mulé, vai morar em bairro bom, sacana! Vai tirar onda”. O sorriso abobalhado se desfaz pouco depois, bastou uma curva fechada e uma ladeira abaixo, para surgir atrás dos prédios de luxo, um mostro formado por barracos em madeira, papelão, remendos e paredes avermelhadas sem reboco. Um buraco, um morro infestado por construções que se assemelhavam a entulho se vistas de longe. “Tonhinha, cê não pensou que... Ah! Habahaha... É aqui mesmo, sai do carro aí”. Antônia, ainda com as pernas frias e metade da bunda exposta, e Cafifa, fatiotado no melhor estilo anos quarenta, descem as escadarias improvisadas da criatura, do núcleo do semi-bairro de semi-luxo. Cafifa olha pro mato, pega um pedaço de cabo de vassoura que estava jogado e continua sua trajetória, se enfiando pelos corredores da “Vilage Residence of Pindaíba” como ele próprio menciona e ri novamente da cara inconformada de Antônia. Os dois param em frente a um barraco tosco como todos os outros:

– É aqui. – Põe o pedaço de madeira encostado ao lado da porta.

– De casa! – Diz Cafifa, batendo palmas.

Uma bela moça com os olhos ainda fechados de sono, pele morena clara e os cabelos artificialmente lisos, vestindo uma camisola vermelha e transparente deixando aparecer os seios fartos e o corpo esguio, abre o sorriso:

– Meu nego! Tudo bom, gatinho?

– Tudo bom minha linda, melhor agora. – Novamente, cortejando com seu galanteio tão tradicional quanto sua roupa, beijando as mãos de unhas gigantescas da moça.

– Entre vá, a casa é sua! – Risos.

– Precisa não, to bem. Só vim lhe perguntar uma coisa, meu amor: Cadê?

A moça, que olhava diretamente para Cafifa com umas das mãos apoiada na porta, desviou com um olhar desolado para baixo... Foi o bastante. Ele fecha a sua mão mais decorada e esmurra o nariz da mulher. A cabeça é arremessada pra trás, sendo seguida por três passos cambaleantes. Ela cai por cima da mesa de plástico derrubando inúmeros frascos de perfumes, maquiagem e bijuterias ao chão de concreto. Os anéis da mão pesada de Cafifa se rompem “Fuleiragem esse anel, na moral!”. Ele pega o pedaço de cabo de vassoura e a partir desse instante todas as suas frases tem como ponto final uma paulada contra as costas da mulher quase inconsciente, caída entre os cacos, tintas e o odor de perfume barato:

– Não...! – Gritou Cafifa no meio da trajetória da paulada.

– Aarrgh! – Gritava a mulher após o som seco da madeira contra sua coluna.

– Pegue...!

– Argh!

– Mais...!

– ...

– Porra nenhuma...!

Quando o vermelho da camisola e na camisola já se tornava opaco e a mulher apenas se contorcia arrastando os frascos e seu corpo pelo chão, Cafifa começa a suar e interrompe seus golpes.

– Pegue uma muda de roupa aí e se saia agora!

Embalada pela sua respiração ofegante de raiva e choro, a moça demorou mais para levantar do que para juntar duas ou três peças de roupa numa bolsa, calçar os saltos e sair sem falar nada, com uma mão segurando um lenço contra o nariz, sai encarando a nova moradora de sua ex-casa. Antônia que assistia a tudo impassível, pega uma vassoura e começa a varrer os cacos pra fora. Cafifa sai do barraco e observa o saco de pancadas vermelho tomar distância. Volta para dentro, bebe um copo d’água, liga a televisão e desliga:

– Olhe, esse telefone aí faz ligação também, qualquer coisa me ligue. Vou cuidar, té mais, Tonha.

Voltando pro seu carro, Cafifa se depara com o pára-brisa em pedaços e a lataria toda riscada com promessas e mensagens de morte escritas.

– Ô miséria! Que mole federal... Essa vagabunda me paga. É bom que eu já sei, próxima vez que tiver isso, eu venho pra cá de busu.



quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Capítulo 2

Ilustração por: A.O.D.P. (Clique na imagem para ampliar)


Capítulo 2

A Maca-Trincheira

Quatro dias se passaram e o gesso já tomava a cor amarelada das paredes. Além de não poder coçar e suar de agonia por isso, Amélia ainda não conseguia falar. A rara prescrição médica era apenas atribuída aos visivelmente feridos e, principalmente, de maior potência vocal. Sem a voz, ela parecia tranqüila e devidamente medicada. Uma garota vestida apenas de queimaduras, feridas, ataduras e gesso, deitada cruamente numa prancha de metal sem cobertores, era apelo insuficiente em meio a um coro de desesperados com seus cantos dignos de uma câmara de tortura. Era uma multidão de pessoas que suplicava por atendimento e remédios, parentes em fúria ameaçando quebrar as vidraças se o médico não vier, enfermeiros raivosos dando respostas negativas a tudo, doentes se urinando na metade do caminho para o banheiro. Boiando nesse mar feito de pedaços de ataduras e esparadrapos, gritos, gemidos, tosses carregadas, gemidos, risadas sarcásticas, gemidos e sussurros coletivos em reza estava a maca e a menina. Uma enxaqueca pulsante e aguda aumentava quando a coceira por entre o gesso e sua pele emergia e ardia com o suor. Lembrava vagamente de ter comido uma maçã e só. Na sua cabeça e em seus olhos ela urrava de dor, esperneava de choro, mas sua garganta apenas reproduzia o leve som de sua respiração intermitente e suas pernas permaneciam eretas. Poderia morrer ali, poderia ser morta ali, e levaria horas, talvez um dia inteiro para perceberem.

No sexto dia, a presença da única menina numa maca, naquele cenário de guerra, começava a se tornar mais perturbador para o resto dos pacientes que qualquer ferimento. Apesar de estar agüentando dias de dor sem nenhum tipo de analgésico ou remédio para suprimi-la, sua posição em relação aos que estavam no chão era tida como confortável demais. “Ói, essa menina vai sair daí quando? Minha mulher tá querendo se deitar também, meu irmão!”, e Amélia começava a se sentir ameaçada. Virou a cabeça e em resposta obteve todos os olhares do corredor em sua direção, também amarelados como as paredes, assombrosamente invejando o luxo do pedaço de metal sobre rodas, sem lençóis ou travesseiros.

Até que o parente mais revoltado carregou sua esposa e caminhou em direção a maca. Parou ao lado da menina observando um espaço vazio “Você é muito pequena pra ficar sozinha nessa cama, encoste pra lá ai, vá...”, e Amélia não se moveu, apesar de todas as suas forças estarem concentradas e suas veias estourando em direção à perna, tentando liberar espaço para a mulher nos braços do homem. Este se enerva, ainda com a mulher inerte nos braços, deixa sobrar uma mão, apalpa os pés enfaixados de Amélia. Ela grita silenciosamente, apenas com seu pensamento, mas grita para ele não fazer isso... E o homem puxa as pernas da menina para o lado. “Aarrggh!” Um grito agudo de dor explode, reverberando na testa de todos. Amélia extravasa o sofrimento de sua estadia marcial num único som, a poluição sonora do ambiente some e todos percebem agora que a menina consegue falar. Indiferente, o homem ajeita sua mulher no flanco de maca conquistado na batalha, com os olhos quase fechados de tão franzida que estava a sua testa de general raivosa. “Eu te odeio Carlos...” sussurra a esposa com os lábios frouxos, sentada no metal e encostada na parede, “Cala a boca! Aqui tá melhor pra você. Não tá?”, responde o marido impaciente. Ele não pára de balançar freneticamente os joelhos de uma perna, com os dois punhos fincados na beira, fazendo uma cerca em volta do seu território. Olha pro rosto aterrorizado de Amélia, “Relaxe, que daqui a pouco eu tiro essa menina daí”, e olha novamente pra mulher.

Uma outra acompanhante de aparência mais tosca, gorda e baixa, se levanta do chão, ergue o dedo indicador:

– Rapaz, minha mãe tá aqui antes de sua mulher! Quem deveria sentar aí era ela que é uma senhora já!

– Disse bem, baranga, era...

– Baranga não, seu corno! Respeite os doente! Cada um tem que ter sua vez aqui, seu descarado...

E essas foram as últimas frases audíveis e inteligíveis. A poluição sonora volta em peso de orquestra em fúria. O corredor da ala de combate se exalta e até os doentes se estranham e soltam ofensas entre si. A maca abrigava a mulher sonolenta e bêbada por algum tranqüilizante e Amélia estimulada por toda a adrenalina que seu corpo poderia produzir, agora acuada entre os gritos e a parede. Em volta da maca se acumulavam vinte doentes que haviam chegado todos em primeiro e reclamando seu posto. A baranga, em frente ao homem, cessou a discussão quando este falou: “Cê parece uma bola de sebo com cabelo, sua mocréia!”, foi o bastante pra bola de sebo fechar as mãos de lavadeira e arremessar contra o general atingindo-o bem no ouvido. Essa foi a fagulha que faltava e o embate hospitalar se espalhou feito o pior vírus do recinto. Quando começaram a empurrar e balançar a estrutura e agarrar os braços enfaixados da menina, ela se jogou contra a barreira humana, colocando fogo na disputa pela vaga “Saiu, saiu! Venha minha tia!”, “Êpa, se saia”, “Minha mãe! Venha!”. A essa altura a baranga e o parente revoltado já aplicavam tabefes e puxavam orelhas e cabelo. A maca, ainda com a esposa sentada, vai ao chão caindo por cima alguns que estavam sentados ao lado. Uma pancadaria no lugar certo. Os inimigos de Guerra se destacavam bem, cada parente por si e os doentes eram os que nem se moviam entre os socos e pontapés que voavam por cima de suas cabeças. Amélia consegue se desvencilhar da embolação, pulando com o pé não engessado e um olho não enfaixado. A gritaria e a raiva preenchem o corredor, pedestais de soro e pranchetas são usados como armas e qualquer mulher ou criança que puder carregar algum, será necessária na batalha.

O barulho já havia despertado a atenção dos enfermeiros e estes agora apenas observavam a cena com as mãos na cintura, esperando a briga acabar. “Pára! Pára!” gritou uma mulher com a boca cortada e ensangüentada, ela se surpreendeu pois todos obedeceram, coincidentemente, com a chegada da polícia, ou melhor, de um único policial. A esposa, ex-sócia da maca, observa seu marido inconsciente ao chão com um leve sorriso de canto de boca. Os doentes observam a baranga sendo algemada, com os cabelos desgrenhados. Alguns parentes se tornam agora pacientes, o resto dos parentes, já impaciente, retira os seus daquele corredor, campo de concentração.

Amélia fugiu e perdeu o final da Batalha do Soro Fisiológico, agora percorre outros corredores do setor de emergência, observa outras possíveis guerras se iniciando, algumas violentas, como a sua, e a maioria silenciosa. Estas as mais degradantes e desumanas, pois se manifestam onde já não há forças, ao embalo de gemidos e protestos a esmo.

Num pé só, pulando calcanhares dos doentes refestelados pelo chão e ouvindo mais grunhidos e rosnados passando pela atadura que cobria sua orelha, ela chega à sala de espera. Ouviu o som da rua e uma providência divina lhe conduz até a única cadeira vaga. Ela senta, acomodando as partes sãs do glúteo sem encostar as costas na cadeira de plástico. Outra providência, desta vez demoníaca, a conduziu até o campo de visão do seu vizinho, Agnaldo. Ele trocava galanteios com a única atendente no balcão, que o ouvia soltando pequenos risos e embromando o trabalho, concentrada nas palavras floridas do galã. Ainda com o sorriso ensaiado no rosto ele olha pra trás, até reconhecer a menina que acabara de sentar na sua cadeira:

– Ah! Ô minha linda, precisa procurar mais não, – diz pra atendente – olhe ela ali... Amélia!

A menina enfim, soltou as pálpebras e o sorriso. “Oi”, com a doçura de uma princesa mais uma vez salva pelo vizinho.

A moça no balcão checa os dados fornecidos:

– O senhor tem algum documento do paciente?

– Tem não, meu amor... O incêndio levou tudo, sei nem como é que eu vou fazer.

– Foi o senhor que deu entrada não foi? Agnaldo Conceição Barbosa?

– Isso, minha gata – mantendo o tom leve de galã –, Amélia Conceição Barbosa... Minha filha...

terça-feira, 31 de julho de 2007

Capítulo 1


Ilustrações: A.O.D.P. (clique na imagem para ampliar).

Capítulo 1

Amélia dos Santos

Com as duas mãos quebradas e os pés esfolados de tanto bater na porta do barraco em chamas, começa a dar cabeçadas, joelhadas e arremessar o ombro contra a madeira. A menina franzina mais parecia tentar vencer a tranca com seus gritos agudos direcionados para as correntes da porta, extravasando uma dor mais aguda ainda. As correntes passavam por um buraco na parede e outro na porta improvisada, com um cadeado friamente planejado para evitar escapatórias. As labaredas tomavam cada vez mais força, como outra boca aberta em direção à menina.

Envolta pelo fogo, fumaça preta e os móveis já se despedaçando, Amélia não conseguia achar seus irmãos. Outras quatro crianças que dormiam entre o fogão de duas bocas, a TV de cinco polegadas e debaixo da vela de sete dias. Apesar do único cômodo ser pequeno, era impossível vê-los. O calor já cozinhava suas costas e fervia a sua cabeça, Amélia olhava pra traz e só enxergava mais chamas, mais dentes e mais línguas flamejando em alta temperatura. Agressivas, subiam pelo teto usando um combustível interminável. Uma das poucas coisas que não queimaria seria a corrente na porta. Sem conseguir olhar mais pra sua casa, chorava de raiva, medo e impotência. Ela não conseguia ajudar seus irmãos.

Continuou incessante com os golpes e quando o sangue já era mais visto que a textura da madeira na porta e as dores das feridas e dos ossos fraturados já não eram mais sentidas, abruptamente a madeira se rompeu com golpes de facão. Com o arrastar das correntes pela parede a porta se abriu. Amélia saiu em desespero, com a baforada de ar quente que correu junto com ela, até os braços de algum vizinho.

Além do estalar das paredes do barraco se quebrando e pequenas explosões diversas entre altas e abafadas, sentia o cheiro de plástico e amianto se queimando. Parou de sentir cheiros quando percebeu o de seus próprios cabelos queimados. Parou de ouvir os lamentos e imprecações das vizinhas “Ô meu deus, tem menino lá dentro!” quando tentou com toda sua força e não conseguiu gritar. Até o último sentido em funcionamento interromper-se com a visão de sua casa engolida pelas chamas.

Foi quando Deus lhe apareceu pela primeira vez, jovem, vestindo uma jaleco branco parecido com o do açougueiro, olheiras e um estetoscópio pendurado no pescoço e lhe disse:

– Eita que você iria ficar mais pretinha do que você já é, hein, Amelinha?

E se desconcentrou de risos. A menina parecia que seria servida em algum banquete canibal, coberta por sangue e cinzas, alguns pontos brancos de queimaduras e o suor ainda brilhando em pontos não atingidos. O médico em plantão, sem enfermeiros, com uma cara de dopado, cuidou dos ferimentos da menina, enfaixou alguns cortes, engessou as partes quebradas e cuidou das queimaduras, impressionantemente poucas e de baixo grau, afetando apenas alguns pontos das pernas e costas. A franzina, suja e agora remendada, repousava tranqüila numa maca especial no corredor da emergência, envolta por gesso, ataduras, pomadas e mais bocas, essas de pessoas gemendo, sedentas pelo atendimento divino. Adormecia artificialmente, tentando esquecer os gritos irracionais de seus irmãos menores, que ecoavam entre seus ouvidos contra sua própria vontade.

Já amanhecia e o barraco havia se tornado pó. Manchas pretas de fogo nas paredes dos vizinhos. Uma pequena fumaça singrava por entre as cinzas e um grande público que saía para o trabalho engarrafava os corredores estreitos. Dois policiais averiguavam a situação entre bocejos, dois enfermeiros retiravam os corpos entre resmungos, dois bombeiros encharcavam as cinzas em silêncio, dois repórteres comemoravam discretamente a matéria do dia. Foi quando a vizinha sendo interrogada pelos policiais falou: “... é ela vai trabalhar não sei onde e deixa os menino tudo trancado aí, só volta... Peraí, o moço, olha ela ali ó, Antônia!” Antônia sente o calafrio de ter sido reconhecida, escondida atrás de todos os curiosos em volta da sua ex-casa. O povo alteia a voz e direciona seus olhares para a mãe dos queimados, a raiva se manifesta nas pessoas e Antônia se vê acuada pelos rostos nervosos e instigados ao linchamento. Quando os policias abrem caminho passando pela multidão, a criminosa arranca os saltos dos pés e dispara entre as vielas e barracos. Correu como um cão feroz, pulando filetes de esgoto, pedregulhos e degraus, esbarrando em bicicletas e latas, ouvindo os gritos de “pega a vagabunda assassina!”, sem olhar pra trás em hora nenhuma, sem pensar em mais nada além de correr.

Quando chega ao asfalto e respira a corrente de ar da avenida que limita a favela, sentindo um vômito quase chegar devido ao esforço, Antônia põe as mãos no joelho, ofegante, com gotas de suor pingando por cima das narinas e o seco amargo da boca assustada. Olha para si mesma, vestindo uma saia minúscula delineada pelas dobras da barriga elevada. Agradece as pernas fortes pela fuga com dois tapinhas “quem me pega é coelho!”. Acende um cigarro, se dá conta ao observar o fogo do isqueiro e pára por dois segundos, e sua expressão de orgulho arrogante se desfaz com os músculos da face afrouxando. Imagina o inferno que passaram. Pensa nos filhos pela última vez enquanto viaja num ônibus de volta para o prostíbulo de onde saiu.